segunda-feira, 14 de maio de 2012

A BICICLETA, A CENSURA, A SENZALA E O ABUSO

Há uns 10 dias atrás foi notícia em todo o Brasil o caso do cinegrafista que dirigia uma bicicleta elétrica e, revoltado com o fato de uma barraca da “Operação Lei Seca” estar montada no meio da ciclovia, começou a fazer imagens e acabou tendo a bicicleta apreendida por se negar a fazer o teste do bafômetro.

 Os policiais levaram em consideração uma resolução no mínimo obtusa do CONATRAN, que equipara as bicicletas elétricas aos ciclomotores e exige uma série de itens. Isso nunca havia acontecido antes e gerou um acalorado debate entre as autoridades sobre o assunto, que acabou resultando numa regulamentação municipal que libera o uso das bicicletas, exigindo apenas respeito ao limite de velocidade de 30 km/h, uso de capacete e espelho retrovisor. Tudo isso começou porque os policiais da Lei Seca, se sentindo incomodados com o registro de imagens, resolveram abusar de sua autoridade e, baseando-se na sua interpretação da tal resolução, fizeram o que fizeram gerando a polêmica e o debate.

 Ontem, na emblemática data de 13 de maio, dia em que se comemora a assinatura da Lei Áurea, que, pelo menos no papel, aboliu a escravidão dos negros no Brasil e também dia em que os umbandistas comemoram o “Dia das Almas” em homenagem aos pretos velhos, um jovem negro, oriundo do andar de baixo, como a maioria de seus pares, que encontrou no Rap uma forma de manifestar seus sentimentos e um caminho para a sua vida, estava em um palco, montado em uma comunidade da periferia de Belo Horizonte, onde era realizado um festival de hip-hop.

 Do alto daquele palco, aquele jovem negro, que, contrariando as estatísticas ganhou fama e prestígio através de suas letras, de suas rima, de seu talento, não esquecendo suas origens, cantou à plenos pulmões o seu Rap “Dedo na ferida”, em que critica a violência policial e o abuso de autoridade, mencionando ações desastrosas com as de Pinheirinho e da cracolândia. No refrão da letra que diz “Foda-se vocês, foda-se suas leis!”, assim como fez no clipe da música, Emicida colocou o dedo médio em riste e foi seguido pela massa que, vendo os policiais que faziam a segurança no local, passaram a dirigir seus dedos não à eles, mas à instituição que representam.

 Ao final do show, confirmando o que Emicida dizia em sua letra, a PM de Minas, agindo em abuso de autoridade, desrespeitando o direito e garantia individual previsto na Constituição Federal de liberdade de expressão, deu voz de prisão ao rapper por “desacato à autoridade”. Emicida, algemado, foi conduzido até a delegacia, prestou depoimento e foi liberado, depois que o assunto correu o mundo através das redes sociais, indo parar na grande mídia.

 Mais uma vez, numa interpretação ao seu bel-prazer, a polícia, sob o pretexto do cumprimento da lei, abusou de sua autoridade. Assim como fizeram com o ciclista, fizeram com o Emicida. O debate a ser aberto aqui é muito mais amplo e tem que ser colocado na mesa e o dedo tem que realmente cutucar a ferida: QUAL É A LINHA QUE SEPARA O CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL E O ABUSO DE AUTORIDADE?

 Como advogado, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, posso dizer que muitas vezes o suposto “desacato” nada mais é que a legítima defesa contra o abuso de autoridade. Se o sujeito está sendo alvo de uma ação arbitrária e reage, ele não está desacatando e sim se defendendo do abuso. Isto tem que ficar bem claro e a justiça tem que se pronunciar de forma contundente a respeito e ser acompanhada pelos chefes de executivo estadual e federal, por ser uma questão essencial para um Estado Democrático de Direito.

 Este debate sobre a violência e a arbitrariedade policial tem que ser aberto nacionalmente e ampliado. Quando Emicida compôs a letra, quis fazer esta denúncia. Agora, sendo vítima da própria arbitrariedade que denunciou, talvez tenha colocado mais uma vez o dedo nesta ferida e compete a todos nós cobrar abertura deste debate, promovendo discussões, palestras, exibições de filmes, tudo o que for possível, em nossas quebradas, escolas, universidades e locais de trabalho. Estaremos todos colocando o dedo nesta ferida, que não vai cicatrizar enquanto o povo continuar abaixando a cabeça para isso. Coloquemos as cartas na mesa!

 Um salve e paz à todos!

Texto publicado originalmente no site Central Hip-Hop: http://centralhiphop.uol.com.br/novochh/arquivo/9251

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